sábado, 5 de noviembre de 2011

Lá porque tens cinco pedras

Cá estou, no cárcere, a pagar a minha culpa, mas não me arrependo de nada, o que fiz esteve bem. Tinha de o fazer, sem dúvida tinha de o fazer. Qualquer homem no meu lugar tivesse feito o mesmo, qualquer homem menos ele, que não era homem, nem cantor, nem fadista, nem coisa nenhuma. Por isso o matei.

Eu era (eu sou, quero dizer) o melhor cantor de fado de Lisboa, o melhor e o mais famoso. A própria Amália nomeara-me o seu sucessor quando cantávamos juntos na 'Taverna do Embuçado'. Sim, também estava o Carlos do Carmo, mas não tinha nem o meu talento nem o meu sucesso. Posso ter matado um homem, mas nunca minto, nem sequer exagero. O rei das noites de Lisboa era eu, e o meu palácio, o 'Senhor Vinho', que converti no clube mais famoso da cidade, na catedral do fado. Eu, o Fernando Parreira, era o fado. Até o Carlos do Carmo vinha incógnito a ouvir-me cantar. E ficava extasiado. Não minto. Posso ter matado um home, mas nunca minto, nem sequer exagero. Todos ficavam extasiados.

Então chegou ele. Vinha apenas para me acompanhar nas noites do 'Senhor Vinho', para aprender ao lado de um mestre, de um mito como eu. Era jovem de mais, quase um puto. Não cantava mal, mas como ele havia dúzias de cantores nas noites de Lisboa. Para cantar o fado é preciso ter vivido. Um puto não pode cantar bem o fado e muito menos fazer sombra ao grande Fernando Parreira! Mas o Ricardinho Ribeiro (esse era o seu nome) parecia não o querer perceber.

O pior de tudo é que, como era jovem e as mulheres o achavam bonito, conseguiu logo um monte de admiradoras que vinham todas as noites só para o ouvir cantar e, mal abria a boca, gritavam-lhe: “Bonitão!”. Ao bom cantor de fados grita-se-lhe apenas: “Fadista!”. Claro que o Ricardinho nem era bom cantor, nem fadista, nem coisa nenhuma. Aquilo era terrível. Pareciam um rebanho de fãs do último ídolo juvenil pop, um desses que mexe os quadrís e a sua linda cabeleira para esconder que não sabe cantar. Como consequência de tudo isto, a socialite deixou de vir ao 'Senhor Vinho' e foi substituída por uma malta de garotas que tinham muito mau gosto e não entendiam nada de fado.

A última noite em que o Ricardinho actuou no 'Senhor Vinho', começou a cantar Anjo inútil (“isso é o que tu és”, achei) e continuou com As rosas do meu caminho (“espinhos poria eu”, pensei). Não sei porque te foste embora foi a sua seguinte canção e eu disse por baixo: “Tomara te fosses tu embora e para sempre”. Logo que começou a cantar Disse mal de ti, quase me parto a rir: “Eu é que disse mal de ti. Disse, digo e direi”, achei. A seguir cantou Quando os outros te batem, beijo-te eu e não pude evitar mudar a letra e cantar por baixo: “Quando os outros te beijam, bato-te eu”. “Uma e mil vezes te batia”, pensei.

Assim que o Ricardinho terminou a sua actuação, aproximei-me dele e disse-lhe: “Quero falar contigo agora”. Incomodou-se um bocado porque estava a engatar com uma rapariga meio imbecil, mas, como ninguém contradiz o Fernando Parreira, assentiu. Levei-o fora, para um beco escuro que havia atrás do clube, e gritei-lhe: “O que é que andas a fazer? Em que estás a converter o 'Senhor Vinho'? Não tens respeito por nada?”. “O que acontece é que estás com ciúmes, porque eu sou mais jovem, mais bonito e ainda por cima melhor cantor do que tu”, respondeu-me. Eu já estava fora de mim: “Ninguém canta melhor do que o Fernando Parreira! Ninguém! Nem o Carlos do Carmo, nem o Fernando Maurício, nem com certeza um puto como tu”. “Tens ciúmes e soberba”, disse ele, e começou a cantar: “Lá porque tens cinco pedras / num anel de estimação, / lá porque tens cinco pedras / num anel de estimação, / agora falas comigo com cinco pedras na mão”. “Ainda não, mas aguarda um bocadinho”, disse-lhe. E peguei numa pedra da rua e bati-lhe com ela uma, duas, três, quatro e até cinco vezes. O Ricardinho caiu ao chão com a face cheia de sangue e sem sentidos. “Se o fado é a maneira de tirar as feridas fora, como dicia a Amália, eu já tas tirei todas”, gritei-lhe.

Quando voltei a entrar no 'Senhor Vinho', soava o Fado do ciúme no gira-discos do clube, como a querer dar a razão ao Ricardinho, e gritei: “Era ele quem estava com ciúmes de mim! Era ele!”. Toda a gente olhou para mim sem compreender. Uns minutos depois, encontraram o Ricardinho morto no beco e a seguir eu fui detido, porque todos me viram sair do 'Senhor Vinho' com ele e voltar sozinho, e além disso tinha a camisola manchada de sangue.

Cá, no cárcere, canto fado quando quero e todos me gritam: “Fadista!”.

Relato ganador del concurso de relatos del Departamento de Portugués de la Escuela de Idiomas de Vigo en 2006

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